Redes sociais revelaram descompasso entre governo e aspirações sociais, diz Lemos
O papel das redes sociais na
articulação dos protestos de rua ─ na promoção de diferentes temas da
agenda das manifestações e no ato de convocar os jovens ─ mostrou que o
Brasil conta com "uma sociedade 3.0, mas com um governo 1.0". Essa é a
opinião de Ronaldo Lemos, representante do MIT Media Lab e coordenador
do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas.
Em entrevista à BBC Brasil, o escritor e
acadêmico afirmou que os protestos populares mostaram que "as demandas
que surgem na internet são legítimas, que elas deveriam influenciar o
Congresso e o Executivo da mesma forma que a mídia exerce influência
sobre pautas de políticas públicas".
Mas os protestos e a indiferença das
autoridades em relação às redes sociais, comenta, também mostraram um
grande descompasso entre as demandas da sociedade brasileira e as
respostas das autoridades brasileiras.
"O momento atual oferece uma oportunidade muito
grande para o governo entrar nesse diálogo, mas governo e sociedade
estão divorciados nesse momento."
Leia a seguir a entrevista.
BBC Brasil - Durante a Primavera Árabe,
países como o Egito chegaram a bloquear o acesso à internet, o que
dificultou a mobilização de manifestantes. Mas, no Brasil, a internet é
livre, e as redes sociais tiveram um papel importante na convocação de
protestos. O movimento no Brasil teria sido mais resultado das redes
sociais do que a Primavera Árabe?
Ronaldo Lemos - As redes
sociais tiveram um papel importante em todos esses movimentos. No
Brasil, ficou claríssimo que a internet virou o fórum de discussão sobre
o que está acontecendo. Não só isso. Ela é o fórum de articulação dos
encontros e das manifestações que estão ocorrendo. Ela está cumprindo
uma expectativa que já existia há algum tempo, de ser um canal onde as
pessoas procuram manifestar frustrações que elas não conseguem há anos
expressar na esfera política, expressar uma vontade de participar na
esfera pública que o sistema político há anos deixou de conseguir
canalizar. Isso é o mais importante que está acontecendo.
BBC Brasil - Foi graças às redes sociais que essas manifestações passaram do mundo virtual para o mundo real?
RL - Exatamente. Esse modelo de
manifestação circula como se fosse um meme (como são conhecidos os
links, imagens, vídeos ou hashtags que se tornam virais ao serem
amplamente compartilhados nas redes sociais). Meme é a peça de
informação que circula um pouco por imitação (...), é uma forma de
comunicação por excelência da rede. Agora, a influência (das
manifestações) veio da Turquia, e antes, o que aconteceu, da Espanha. No
Brasil, essas foram influências muito importantes na ideia desse modelo
de como se manifestar, de como ir para as ruas. Ele acabou sendo muito
importante para o que está acontecendo agora. O estopim veio do
Movimento Passe Livre, até porque, a meu ver, a agenda do transporte
público materializa toda a questão da falta de gestão pública, a vontade
de ocupar a cidade, a possibilidade de se deslocar de uma ponta a outra
sem o sacrifício de tempo ou de dinheiro. Esse movimento foi percebido
como uma síntese de todas as coisas que o país vive, de todas as crises
de governabilidade que o país vive, e aí escalonou para uma dimensão
maior, justamente graças ao debate que começou nas redes sociais.
"O
que aconteceu foi um descompasso cada vez maior entre a agenda
governamental e as demandas de diversos setores da sociedade, que
estavam difusos, não tinham identidade ideológica clara, mas vinham
sentindo uma insatisfação crescente. Tudo isso agora estourou com a
questão do transporte público e com a Copa das Confederações e a
sensação de que o governo investiu demais em coisas não-essenciais. "
BBC Brasil - No começo, muitos
expressavam entusiasmo e vontade de ir para as ruas. Mas, mais
recentemente, surgiu o receio de que o movimento poderia estar perdendo o
rumo, pregando o autoritarismo ou enveredando pela violência. O fato de
as redes sociais serem uma Torre de Babel em que cada um prega uma
mensagem não pode contribuir para uma tensão?
RL - Contribui, sim. Caminhei
pela Presidente Vargas (avenida no Centro do Rio que foi palco de
manifestações na semana passada). As manifestações, que começaram na
segunda-feira, tinham uma agenda clara ou ao menos uma agenda principal,
que era o transporte urbano. Depois dessa manifestação, essa agenda foi
bem-sucedida e conseguiu baixar as tarifas em várias cidades do Brasil,
mas não conseguiu promover uma discussão maior sobre a reorganização
mais abrangente do transporte público. Mas ao menos conseguiu cumprir o
resultado de curto prazo. É um momento em que existe muita energia no
Brasil, uma energia de mudança. Mas, depois do transporte público, ainda
não surgiu uma plataforma de destaque entre as outras plataformas
difusas. Nenhuma entrou em primeiro plano. Surge uma frustração por
haver tanta energia, mas sem o surgimento de uma agenda.
BBC Brasil - Falando em frustração,
existe o risco de as redes sociais passarem de uma posição de
protagonismo e vetor para um instrumento inócuo quando o movimento fica
difuso demais?
RL - Eu acho que não. As redes
sociais se tornaram o principal fórum para esse debate. As pessoas que
participaram das manifestações ligam a TV e veem os mesmos comentaristas
falando sobre o que aconteceu. Daí, vão para a internet e passam três,
quatro horas checando o que seus amigos estão falando sobre a mesma
questão no Twitter e no Facebook. As pessoas agora estão se dedicando a
discutir e a analisar o que está acontecendo. Há um momento de reflexão.
As pessoas estão fazendo um balanço sobre quais os limites e quais as
garantias democráticas que não podem ser abaladas. Há uma busca por
outras agendas que podem se tornar centrais. As pessoas estão buscando
novas agendas que podem gerar consenso. Não acho que o papel das redes
sociais se enfraquece. Pelo contrário. Hoje está havendo um debate sobre
o que aconteceu e quais os próximos passos.
Lemos acredita que governo precisa participar do debate que está vindo à tona nas redes sociais
BBC Brasil - Os governantes não souberam interpretar os sinais de insatisfação que já se percebiam nas redes sociais?
RL - Existe desde sempre um
temor sobre o papel das redes sociais no Brasil. Um elemento objetivo
desse temor é que a lei sempre tem sido extremamente restritiva no que
diz respeito ao uso da internet e das redes sociais na campanha
eleitoral. Até meados da década passada, o uso da internet na campanha
eleitoral era praticamente proibido. Tudo que acontecesse fora do site
do candidato era considerado pela lei eleitoral como propaganda
irregular. Quando você olha a lei, dá para enxergar o temor que a rede
gera na esfera pública. Demorou anos para que a rede ganhasse a
liberdade necessária. O que aconteceu foi um descompasso cada vez maior
entre a agenda governamental e as demandas de diversos setores da
sociedade, que estavam difusos, não tinham identidade ideológica clara,
mas vinham sentindo uma insatisfação crescente. Tudo isso agora estourou
com a questão do transporte público e com a Copa das Confederações e a
sensação de que o governo investiu demais em coisas não-essenciais. O
sentimento que o governo ficou preso demais em barganhas internas, nesse
toma lá dá cá entre Executivo e Congresso para aprovar qualquer coisa. E
as agendas brasileiras ficaram totralmente paradas. E a sociedade
brasileira ficou profundamente incomodada com isso. As pessoas estão
cansadas do "mais do mesmo" e querem agendas maiores e mais
significativas para o país. E isso está sendo extravasado para as redes
sociais.
BBC Brasil - Consta que dentro do
governo se comentou que houve uma falha da Abin (a Agência Brasileira de
Inteligência) pela não-antecipação dos protestos, e que, para saber de
antemão que manifestações aconteceriam, bastaria ter acompanhado a
movimentação no Facebook e no Twitter. Não seria esse um sinal de que o
mundo é "digital", mas o governo ainda é "analógico"?
"Houve
sim falha do governo em identificar essas frustrações. O governo ainda é
1.0. A sociedade brasileira é 3.0. Era 2.0, mas depois das
manifestações, ela subiu para 3.0 porque se misturou a rua com a rede. "
RL - A rede gerou um outro
canal de expressão democrática, onde se expressam demandas, visões,
agendas para o país. O problema é que o canal está lá, mas é totalmente
ignorado pelo sistema político. O poder público age como se essas
demandas que surgem na internet não fazem parte da agenda, mas as
demandas extravasadas pela internet são demandas reais, fundamentadas no
descontetamento de cidadãos. O poder público age como se a internet
fosse um mundo à parte, que só o que aparece na mídia (tradicional) é
que tem relevândia. A internet seria perfumaria, algo acessório. Mas as
manifestações mostraram o contrário, inclusive por cartazes com dizeres
como ''Saímos do Facebook". Os protestos mostraram que as agendas que
estão na internet são agendas legítimas, que deveriam influenciar o
Congresso e o Executivo, da mesma forma que a mídia exerce influência
sobre pautas de políticas públicas. Houve sim falha do governo em
identificar essas frustrações. O governo ainda é 1.0. A sociedade
brasileira é 3.0. Era 2.0, mas depois das manifestações, ela subiu para
3.0 porque se misturou a rua com a rede. E o recado que a gente está
discutindo é que o que se passa no online precisa ser levado a sério.
BBC Brasil - Qual deverá ser o papel das redes sociais daqui para frente à luz desse movimento?
RL - Está havendo uma megarreflexão, as pessoas
estão debatendo. Há uma grande produção de informações. Há um debate que
não tem como não ser construtivo, mas é muitas vezes doloroso. Muitos
estão preocupados - e é uma preocupação totalmente legítima - com a
energia que está nas ruas e com quais serão os próximos passos desse
movimento. Há uma grande oportunidade para o governo entrar nesse
diálogo. Mas governo e sociedade estão divorciados nesse momento. O
governo está vivendo num planeta e a sociedade, em outro. Do governo se
espera uma agenda positiva que incluiria desde a reforma política,
passando pela PEC 37, a lei partidária, até o marco civil da internet,
até para reforçar a proteção e a liberdade dos usuários. O Brasil vem
atravessando um regime de crescente vigilantismo na net, com resoluções
da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) que não passam pelo
Congresso.